9.1.23

Tácito



Seguia o ano seu curso
quando doze cidades célebres da Ásia Menor
ficaram de todo arrasadas por um terremoto noturno,
tanto mais letal quanto mais chã a esperança.
Nem mesmo de bom proveito serviu o refúgio
dos campos,
a que em tais casos se costuma recorrer:
porque as bocarras da terra engoliam seus miseráveis habitantes.
Narra-se que as montanhas imensas se esparramaram
em vastas planícies;
que as planícies vastas se converteram
em montanhas imensas;
que altas labaredas de fogo sapecavam a periferia
e o centro dos escombros
entre o espesso betume e a lava e o súlfur que arde.
Nem o de cem olhos, Argos nenhum,
Discerniria crepúsculo, noite, aurora, manhã, tarde.



SALOMÃO, Waly. Pescados vivos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.


26.11.20

humanidade

 

Eu percebo as diferenças óbvias
na família humana.
Alguns de nós são sérios,
outros vivem de comédia.

Alguns dizem que vivem
na profundidade,
e outros cantam que vivem
na realidade.

A variedade de tons de pele
pode confundir, desconcentrar, alegrar,
marrom e rosa e bege e roxo,
bronzeado e azul e branco.

Eu atravessei os sete mares
e parei em todas as terras,
Eu vi as maravilhas do mundo, 
mas nunca a um homem comum.

Conheço dez mil mulheres
chamadas Joana e Maria Joana,
mas nunca vi duas
que fossem a mesma pessoa.

Gêmeos idênticos são diferentes
mesmo que suas feições sejam as mesmas,
e amantes têm pensamentos completamente diferentes
enquanto estão deitados lado a lado.

Nós amamos e perdemos na China,
choramos nos pântanos da Inglaterra
e rimos e gememos na Guiné,
e prosperamos nas praias espanholas.

Buscamos por sucesso na Finlândia,
nascemos e morremos no Maine.
Nos aspectos menores somos diferentes,
nos maiores, somos iguais.

Eu percebo as diferenças óbvias
entre cada tipo e modelo,
mas nós somos mais semelhantes, meus amigos,
do que diferentes.

Nós somos mais semelhantes, meus amigos,
do que diferentes.

Nós somos mais semelhantes, meus amigos,
do que diferentes.


ANGELOU, Maya. Poesia completa. Bauru: Astral Cultural, 2020. Tradução de Lubi Prates.


3.5.20

canção da estrada aberta / song of the open road



1.

A pé e de coração leve eu pego a estrada aberta,
Cheio de saúde, livre, o mundo diante de mim,
O longo caminho de terra diante de mim
levando-me a qualquer lugar aonde eu queira ir.

De agora em diante não peço a felicidade, eu mesmo sou felicidade,
De agora em diante não mais reclamo, não mais adio, não preciso de nada,
Estou farto de queixas internas, bibliotecas, críticas ressentidas,
Forte e alegre eu ganho a estrada aberta.

A ​t​erra​,​ isto me basta​,​
Não quero as constelações nem um pouco mais próximas,
Sei que estão muito bem onde estão​,​
Sei que bastam para aqueles que a elas pertencem.

(No entanto, carrego comigo meus antigos e deliciosos fardos,
Eu os carrego, homens e mulheres, eu os carrego aonde quer que eu vá,
Juro ser impossível livrar-me deles,
Eles são parte de mim e serei parte deles ​de volta.)

1.

Afoot and light-hearted I take to the open road,
Healthy, free, the world before me,
The long brown path before me leading wherever I choose.

Henceforth I ask not good-fortune, I myself am good-fortune,
Henceforth I whimper no more, postpone no more, need nothing,
Done with indoor complaints, libraries, querulous criticisms,
Strong and content I travel the open road.

The earth, that is sufficient,
I do not want the constellations any nearer,
I know they are very well where they are,
I know they suffice for those who belong to them.

(Still here I carry my old delicious burdens,
I carry them, men and women, I carry them with me wherever I go,
I swear it is impossible for me to get rid of them,
I am fill’d with them, and I will fill them in return.)


WHITMAN, Walt. Leaves of grass. New York: The New American Library, 1958.

*tradução minha

2.9.19

espelho / mirror



ESPELHO

Sou prata e exato. Não tenho preconceitos.
O que eu vejo eu engulo de imediato
Tal como é, sem amor ou desamor.
Não sou cruel, só real,
O olho de um pequeno deus, quadrilátero.
Quase todo o tempo eu penso na parede oposta.
É rosa, com manchas. Olhei tanto tempo
Que já é parte de mim. Mas pisca.
Faces e trevas nos dividem a todo momento.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em meus traços o que ela é de fato.
Depois volta-se para as mentiras das velas e da lua.
Vejo-a que retorna e reflito-a fielmente.
Ela me recompensa com lágrimas e mãos trêmulas.
Valho muito para ela. Vem e vai.
Toda manhã é sua face que substitui as trevas.
Ela afogou em mim uma menina, e em mim uma mulher
Velha se alça para ela dia após dia, peixe terrível.


MIRROR

I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever you see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, only truthful.
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.


de Sylvia Plath

in CAMPOS, Augusto de. Retrato de Sylvia Plath como artista. Traduções de Augusto de Campos. Londrina: Galileu Edições, 2018.


30.7.19

o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez ao despenhar-se com sua cabeleira negra & seu stradivárius no grande desastre aéreo de ontem




mi
eu penso em béla bartók
eu penso em rita lee
eu penso no stradivárius
e nos vários empregos
que tive
pra chegar aqui
e agora a turbina falha
e agora a cabine se parte em duas
e agora as tralhas todas caem dos compartimentos
e eu despenco junto
lindo e pálido minha cabeleira negra
meu violino contra o peito
o sujeito ali da frente reza
eu só penso
mi
eu penso em stravinski
e nas barbas do klaus kinski
e no nariz do karabtchevsky
e num poema do joseph brodsky
que uma vez eu li
senhoras intactas, afrouxem os cintos
que o chão é lindo & já vem vindo
one
two
three


In FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo: Cosac Naify, 2007.


10.7.19

as rosas com bolores



Tenho sempre perto de mim
geralmente na minha mesa de cabeceira
um ramo de rosas
todas as manhãs a primeira coisa
que faço quando acordo
é observar atentamente as rosas
a ver se algum bolor poisou
na pele das rosas
quando isto acontece
é muito raro
mas eu gosto de coisas preciosas
e sou paciente
deixo de dormir
para observar o crescimento
desigual e lento do bolor
a pouco e pouco o bolor
vai cobrindo a pele da rosa
ou antes
alimentando-se da pele da rosa
adquire o feitio da rosa
mas a pele da rosa
não está por baixo do bolor
desapareceu
é preciso estar sempre atenta
porque no instante em que
o bolor não pode alastrar mais
a não ser alastrando-se sobre
si próprio
e alimentando-se de si próprio
ou seja suicidando-se
naquele acto de infinito amor
por si próprio
que é afinal todo o suicídio
a rosa pode andar pelos seus pés
antes de ela partir
beijo-a na boca
depois ela parte
e desaparece para sempre da minha vida
então eu vou dormir
porque estou muito cansada
as rosas com bolores cansam-me


In LOPES, Adília. Antologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

10.6.19

Emílio ou Da educação



Garoto
Você é meu
Garoto
Você mora no meu coração
Garoto
Quando tiver condições
Quero morar com você
Garoto.


SALOMÃO, Waly. Gigolô de bibelôs. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

4.6.19

Lira e eu no programa Escala Musical, da TV Cultura






cisne



Humanizar o cisne
é violentá-lo. Mas
também quem nos dirá
o arisco esplendor
— a presença do cisne?

Como dizê-lo? Densa
a palavra fere
o branco
expulsa a presença e — humana —
é esplendor memória
e sangue.

E
resta
não o cisne: a
palavra
— a palavra mesmo
cisne.


In FONTELA, Orides. Poesia completa. São Paulo: Hedra, 2015.

26.5.19

alba



I

Entra furtivamente
a luz
surpreende o sonho inda imerso
na carne.

II

Abrir os olhos.
Abri-los
como da primeira vez
— e a primeira vez
é sempre.

III

Toque
de um raio breve
e a violência das imagens
no tempo.

IV

Branco
sinal oferto
e a resposta do
sangue:
AGORA!


In FONTELA, Orides. Poesia completa. São Paulo: Hedra, 2015.